Notícias & Artigos

Liberdade religiosa, laicidade estatal e isonomia podem ser conciliadas, defende PGR - PGR

A liberdade de crença religiosa, a laicidade do Estado e o princípio da isonomia foram temas de sustentação oral do procurador-geral da República, Augusto Aras, durante a sessão, por videoconferência, do Supremo Tribunal Federal (STF), nesta quinta-feira (19). O colegiado iniciou o julgamento conjunto de dois recursos extraordinários com repercussão geral: RE 611.874 e o Agravo no Recurso Extraordinário (ARE) 1.099.099. O RE 611.874 discute a possibilidade de realização de etapa de concurso em dia distinto do determinado pela Comissão Organizadora, por motivo de convicção religiosa. O ARE 1.099.099 trata da possibilidade de a Administração Pública ofertar atividade alternativa para servidor em estágio probatório que, por motivos de crença religiosa, se sinta impossibilitado de cumprir os deveres funcionais.

Ao se manifestar sobre os dois processos, o procurador-geral da República destacou que a liberdade religiosa, a laicidade estatal e a isonomia podem ser conciliadas. Ele salientou que a liberdade de crença religiosa é um direito humano e fundamental que envolve um dos aspectos mais íntimos da vida das pessoas. Por outro lado, Aras apontou que a laicidade impõe ao Estado o dever de manter a neutralidade em relação às diferentes crenças religiosas. "Trata-se de verdadeira garantia do cidadão, que salvaguarda os indivíduos de ações estatais que possam prejudicar ou beneficiar adeptos de determinada crença religiosa", observou. Sobre o princípio da isonomia, o PGR ressaltou que o Estado não pode criar distinções entre brasileiros em razão da opção religiosa de cada um.

RE 611.874 - O recurso foi interposto pela União contra decisão que permitiu a um candidato que, por ser adventista do Sétimo Dia, que impõe a guarda do sábado, a transferência de sua prova de capacidade física para Manaus (AM), onde o exame ocorreria no domingo. Originalmente, o teste seria realizado no sábado, em Macapá (AP).

Para o procurador-geral, em regra, a alteração do dia de realização da prova de um concurso público, para atender fiéis de determinada crença religiosa, não se concilia com a isonomia. "Admitir que adeptos de uma crença religiosa realizem uma etapa de concurso público em data ou horário distintos dos demais candidatos, cria distinções entre os participantes do certame e pode configurar violação à isonomia", apontou. Para ele, a realização em datas distintas de prova objetiva ou discursiva implica na elaboração de exames com textos diferentes, fazendo com que os candidatos sejam submetidos a avaliações com conteúdos variados, além de onerar o Estado.

No entanto, no caso em análise, em se tratando de exame de capacidade física, o PGR entende que a realização da prova em dias ou horários diversos não submete os candidatos a avaliações diferentes. Dessa forma, segundo ele, a administração do concurso pode estabelecer momentos variados para a avaliação, sem violar a isonomia. No caso específico, a transferência não cria vantagem para o recorrido em relação aos demais candidatos. "É solução hermenêutica que pondera e concilia valores constitucionais, prestigiando a liberdade de crença, não viola a laicidade estatal, nem a isonomia", avaliou.

O PGR manifestou-se pelo desprovimento do recurso, com o reconhecimento de que o direito fundamental à liberdade de crença religiosa, por si só, não impõe ao Estado a obrigação de realizar etapas de concurso público em dias distintos. Aras também opinou pelo reconhecimento de que a Comissão de Concurso pode adotar essa prática quando as circunstâncias do caso concreto indicarem que a designação de data ou horário distintos para a realização de etapa do certame, por motivo de crença religiosa, não configurar violação à laicidade, à isonomia e à impessoalidade, a exemplo da prova de capacidade física.

ARE 1.099.099 - Neste processo, a recorrente, aprovada no concurso público para professora municipal, informou à Administração que, por motivo de crença religiosa, não realizava atividades entre o pôr do sol de sexta-feira e o pôr de sol de sábado, e pediu que lhe fosse admitida a realização de atividade alternativa. A Administração Municipal não fixou grade horária às sextas-feiras à noite, nem estabeleceu qualquer obrigação alternativa. Mesmo assim, a servidora foi reprovada no estágio probatório, por descumprimento do dever de assiduidade, por ausências no horário noturno de sexta-feira.

De acordo com o procurador-geral, a conduta da Administração foi desproporcional. "Atinge, de maneira desnecessária, a proteção à liberdade religiosa. Não é a solução que melhor acomoda os valores constitucionais", argumentou. Segundo ele, a conduta atenta contra o princípio da legalidade, "por se tratar de ato arbitrário, caprichoso, desprovido de justa causa e, portanto, sem fundamentação idônea".

Na avaliação de Augusto Aras, a objeção de consciência feita pela servidora não prejudicou o direito à educação dos alunos, que não foram privados de qualquer conteúdo de estudo ou atividade acadêmica, nem gerou ônus excessivo ao Administrador Público, pois não fora estabelecida grade horária para a professora no período de guarda religiosa.

"A Administração Pública somente deve recusar a oferta de prestação alternativa ao servidor que expressa impedimento ao cumprimento de dever funcional por motivo de sua crença religiosa, quando demonstrar, de maneira fundamentada, em regular procedimento administrativo, que a viabilização de obrigação substitutiva impõe ônus excessivo, o que não ocorreu no presente caso", opinou Augusto Aras. Ele manifestou-se pelo provimento do recurso extraordinário, para que a servidora seja reintegrada ao cargo de professora, possibilitando ao gestor local o exame da possibilidade de formalização de obrigação alternativa a ser cumprida, a fim de que sejam preenchidos os requisitos necessários à estabilização no cargo

Teses - Por fim, Augusto Aras sugeriu as seguintes teses de repercussão geral:

I - A objeção de consciência, por motivos religiosos, previamente apresentada e devidamente fundamentada pelo professante, é justificativa para gerar dever do administrador de disponibilizar, dentro de critérios de adaptação razoável, obrigação alternativa para servidores públicos, em estágio probatório, cumprirem seus deveres funcionais, em observância ao dever de neutralidade religiosa do Estado e a fim de evitar-se impacto desproporcional sobre determinado grupo religioso das obrigações atinentes ao serviço público.

II - A impossibilidade de adaptação razoável, após requerimento do solicitante, deve ser objetivamente fundamentada pelo gestor público, dentro de procedimento administrativo regular.